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"NÓIS É PONTE E ATRAVESSA QUALQUER RIO"

São Paulo assusta. Seja de fora, seja de dentro, a cidade de cinza e concreto é imponente. Está entre os dez maiores aglomerados urbanos do mundo. Uma massa que cresceu para muito além das bordas. De forma espontânea e desorganizada. Cruzada por dois enormes rios: Tietê e Pinheiros. E muitas pontes, que para além de ligar, dividem a cidade. Já cantada pelo grupo de rap Racionais MC`s: “o mundo é diferente da ponte pra cá”. 

É da ponte pra cá, além das margens dos rios e do centro, nas periferias da cidade, locais desprezados durantes décadas pelo poder público, surgiu um dos movimentos mais importantes da cultura brasileira nos últimos anos: os saraus. 

 

Sarau é uma festa. Uma atividade cultural na qual a poesia e a literatura são a parte principal do espetáculo. O sarau é também um encontro. Espaço privilegiado para o público demonstrar que também é artista. E tem a oportunidade de compartilhar palco e microfone com todos os presentes. E não são poucos. Muitas vezes 100, 150, 200 pessoas reunidas. Por quase duas horas. Aplausos, estímulos e incentivo para profissionais muitas vezes não descobertos ou reconhecidos.

 

Não inventamos a roda. Há informações sobre saraus desde o século XVI. Em São Paulo, as primeiras manifestações artísticas aparecem no final do século XIX. A diferença aqui é quem promove os saraus. E a forma de organizar: de uma cultura elitista para uma periférica. Do centro para os bairros afastados. De uma literatura “culta” para uma arte marginal, negra, independente. Da pompa e solenidade das leituras dos grandes teatros e salões, para a força da oralidade, performance e expressão corporal em bares. Com cerveja e pastel. Escondidinho e cachaça.

Não inventamos a roda. Mas a colocamos para girar. Ao nosso estilo. 

 

E deu muito certo. Nas duas últimas décadas mais de uma centena de saraus se espalharam pela cidade. Outras centenas de poetas, escritores tiveram a oportunidade de comungar seus versos e escritos, transformaram em zines, jornais, livros; se fizeram presentes em livrarias, feiras, centros culturais e festas literárias, círculos muitas vezes restritos a nossa participação, pela não publicação em editoras comerciais ou da mediação por agentes literários. Os saraus criaram um movimento que é poético-literário, mas também pedagógico (ao ocupar escolas e espaços de educação não-formal) e socioeconômico, ao promover reconhecimento aos seus artistas e oportunidades de trabalho e renda.

 

Os saraus da periferia, seus poetas e escritores promoveram uma grande transformação na literatura brasileira contemporânea. Seja na forma e conteúdo, seja na difusão e estilo. Há tempos deixou de ser restrita a São Paulo, hoje encontra-se espalhada pelo Brasil, como manifestação urbana, popular; de novas vozes e potências culturais. Ao lado dos slams (batalhas de poesia) são fortes expressões de crítica e (des)construção da realidade brasileira: da desigualdade social ao racismo; do machismo ao crescente fascismo. Sua importância artística está para os centros urbanos e periferias do Brasil, como a Semana de Arte Moderna esteve para a sociedade brasileira, em 1922.

Há muito ainda por se fazer, principalmente quando pensamos em mercado, distribuição, acesso às nossas obras e participação de nossos autores e autoras em feiras e circuitos literários de expressão nacional e internacional. Sim, há muros de desconfiança, preconceito e recursos que bloqueiam e limitam nosso acesso e participação a muito espaços. Mas nossa arte é de guerrilha. Para além de margens, constroem pontes. E como diz o poeta Marco Pezão: “Nóis é ponte e atravessa qualquer rio”. 

 

Rodrigo Ciríaco, 37 anos, é educador e escritor, membro fundador do Sarau dos Mesquiteiros. Autor de 04 livros, participa desde 2006 do movimento de saraus das periferias em SP.

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