“A colheita e a ginga da linguagem mocambeira”
Vai dá trabalho sim,
Quem falou que não daria trabalho?
Ca.Ge.Be – Oba! Clareou
Quando a gente se depara com a ausência de algo, existem duas alternativas fortes: lamento e criação. É possível ficar só no lamento, lamentar enquanto cria, criar com lamentação, ou apenas criar pra ressignificar os passos seguintes. Tudo junto. Uma hora prevalece um jeito, depois outro e com a nossa literatura é assim.
Depois da carnificina sofrida nas quebradas do Brasil nas décadas de 1980 e 90, a literatura emergiu, nas celas, bueiros e butecos. Naquele tempo, não havia espaços literários pra nos receber, editoras interessadas em nos publicar e um público à espera dos livros. A história ensina que se não temos podemos criar, plantar e colher.
As letras germinadas nos saraus das periferias pretas de São Paulo, a princípio, não deu liga com a expectativa de boa parte da crítica literária brasileira e seu anseio de prosa carimbada de prêmio e código de barras, pela comodidade indicada na vitrine da megalivraria ou do comentário glamuroso do jornal graúdo.
Nas primeiras encruzas que acessei pra prosear e ler sobre críticas literárias a respeito da literatura das ladeiras de SP, uns anos atrás, ouvi falas recorrentes: é uma literatura ancorada num só tema/vocês não dominam a gramática/porque não publicam prosas/são bons de ação cultural e menos de texto.
Entre a voz e página é ginga
Quando um tiquinho dessa distância encurtou, foi possível perceber o abismo entre o vento e o bolor. As letras semeadas nos encontros de poesia falada, no percurso-enigma da publicação de livros, e no fio desencapado do chamego (e das treta) entre a voz e página é ginga que não coube em formas tradicionais de análise sobre nosso texto.
Mesmo quando alguns livros da periferia chegaram nas estantes acadêmicas, foi preciso considerar a prosa na estética da poesia, a linguagem mocambeira estruturada no pretuguês, o interesse pra além da nossa hemorragia diária, e nosso garimpo de conquistar leitura de goma em goma, de buteco em buteco, de praça em praça, de escola em escola, de viela em viela.
Num é de hoje que a prosa da periferia é viva, desde os editorais da Imprensa Negra, como no “A Voz da Raça” de março de 1933, cobrando os milicos que esculacharam uma banca de frentenegrinos na volta pra casa; nas letras do bamba Geraldo Filme narrando a história de alvenaria do Nego Tebas; na pioneira literatura de favela de Carolina de Jesus; na lupa editorial da série Cadernos Negros e do Quilombhoje Literatura desde 1978; e nos livros sonoros do rap nos anos 90, chamando pro rolê no trem com RZO, pra se ligar no “mano na porta do bar” com Racionais ou que “essa é vida de muitos em São Matheus” com Consciência Humana.
Essa é uma mina da linguage presente na versação de sarau, nas batalha de rima e poesia e tamém dos livro. É o pretuguês de Lélia Gonzalez. É o plural bantu-nagô, onde “os” e “as” já diz a que veio, onde consoante quase não vem em final de palavra, morô? É o baile de letras que, dependeno do ritmo, consoante não dança pareada, mas a gente entende memo assim, nénão? Questão de estrutura.
É um emaranhado de bloco vermelho, cada goma com um sotaque, com poeira de todo Brasil, se pá do mundo. Os coroa, as coroa, a mulecada, e a piãozada. É a missa na hora do culto, o culto na hora da gira, os buteco e a função vinte quatro por quarenta e oito. O desacerto na mesma mão do solidário copo de café e do saco de feijão emprestado. O macarrão e o churras no domingo pra celebrar a chegada do artilheiro e do troféu do festival do terrão. Isso é irrelevante pra quem procura saciação de sangue e ira na leitura e na audição dessa literatura.
Editoras tramadas nos burburinhos de um recital
Na concepção de Antonio Cândido, sistema literário é assim: concebido na integração entre autores, obras e público (e continuidade). Pois bem, a caminhada da literatura das periferias de São Paulo articula quem escreve, tendo no sarau um dos principais encontros, produz as obras, em boa parte por editoras tramadas nos burburinhos de um recital, e faz ação contínua pra manguear leitura com a mochila cheia de intenções.
Isso vem consolidando os livros de poesia e também os contos e romances, fluindo a profundidade dos enredos e dos estilos. A distribuição cresce com o interesse de outras editoras, o incentivo à leitura faz os livros de grande circulação serem comprados pelo público dos saraus (contradição dos caminhos), esgotamos edições de até dois mil (se pá de mais) exemplares de mão em mão, a crítica tem ampliado as vozes, com leituras de pertencimento e/ou anúncio de matrizes plurais na estética dos textos. Até feiras literárias nós já temos.
Quase duas décadas depois há diferença nos caminhos. Nas escolas, vi o muleque chorar ao perguntar pro poeta como faz pra ser escritor, senti a recepção calorosa pra escritora, cercada de homenagem, recital e prosa sagaz e contemplo a presença generosa de professoras, estudantes e vizinhos espiando e abrindo as asas do livro na suspensão de um sarau.
Além do adianto, o percurso envolve desencontros, aprendizados e épocas de seca, faz parte. Porém, ainda sinto firme a busca de muitos escritores e escritoras da periferia em seduzir a leitura de quem nunca se interessou num livro e a crescente do escambo de leitura crítica entre nós, na busca do melhor tempero antes da publicação. Independente do contexto, semeação é fundamento e adubo, estratégia, é a querência do pé de manga carregado no verão da quebrada.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural, atuante no movimento de literatura das periferias de São Paulo. Participou de atividades literárias em Cuba, Argentina, México, França, Alemanha, Espanha, Paraguai e Chile. Desenvolve cursos, oficinas e palestras de literatura e apresenta recitais de poesia. Publicou "Desencontros" (contos, 2007), "Acorde um verso" (poesia, 2012) e "Crônicas de um Peladeiro" (crônicas, 2014) e Amanhã quero ser vento (romance, 2018). site: www.michelyakini.com