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Foto: Pedro Teixeira Neves

"Somos uma curiosidade Histórica"¹

O meu primeiro contacto com a Galiza vem do tempo da escola primária. Do tempo em que se desenhava o mapa de Portugal e se falava da Península Ibérica. Quando olhávamos para o mapa da península e daí se retirava Portugal dava sempre a ideia de que uma parte tinha ficado para trás. A Galiza, ensinavam-nos, era uma região espanhola. Mas ficou-me para sempre aquela imagem de um pedaço de terra que se soltara e se perdera. Como se fora uma “jangada de pedra”.

 

Depois, nos primeiros anos de Liceu, e já no Liceu, voltava a ouvir falar de Espanha – que era afinal a mesma Galiza, percebi mais tarde, eu e provavelmente os que disso falavam – pelos meus colegas que iam, com os pais, em carro próprio, alguns privilegiados, e de autocarro, os mais remediados, ao outro lado da fronteira, para lá do Minho, às compras. Confesso que cheguei a invejar não ir a Espanha, como os meus colegas. Mais pelo passeio do que pelas compras. Eu gostava era de viajar. Mas o dinheiro, lá em casa, não chegava para tanto.

 

Depois, ainda no Liceu, conheci a Galiza, pela primeira vez como espaço cultural, com identidade própria, geográfica e linguística. Conheci uma Galiza que tinha uma literatura e uma língua literária comum ao norte de Portugal. Conheci a Galiza do Cancioneiro, dos Trovadores, das Cantigas de Amigo. Escritas em galego-português ou galaico-português.

 

“Ai Deus i u é!?”

 

Percebi depois, mais tarde, muito mais tarde, que afinal aquele lugar que tinha ficado perdido no mapa fora, de facto, um território que se perdera, uma raiz que se quebrara, e que o Minho não era afinal uma fronteira natural. Natural seria o Minho ser um rio a unir mais do que a separar. E foi, muitas vezes. Canal de fuga de um lado para o outro quando se fechavam as fronteiras terrestres. O povo de um e de outro lado sempre se entreajudou apesar das divisões impostas, oficiais e políticas, e quando delas era obrigatório fugir para sobreviver.

 

Com o Brasil a minha relação foi diferente. O Brasil foi como se tivesse vivido dentro de mim porque nunca saiu de dentro do meu avô que foi lá imigrante. Um dia o meu avô emigrou. Um dia a minha avó decidiu ir ao seu encontro. A minha mãe foi junto e fez a escola primária em S. Paulo. Com o sonho de regressar ao seu Portugale. No norte do país. Porque chamaria ela Portugale – no seu falar nortenho – a Portugau, interrogavam-se os colegas. Falavam a mesma – já outra – língua que os portugueses tinham deixado ao Brasil como herança. Também o Brasil é uma herança deixada pelo meu avô na minha memória. Aprendi a gostar do Brasil e das recordações da minha mãe que ainda hoje tem presente o ônibus que pegava para ir para na escola. Vivi com o Brasil em casa mesmo depois da minha mãe ter regressado e do meu avô ter, também ele, retornado, muitos anos mais tarde.

 

Foi preciso crescer, passar pela Faculdade e, sobretudo, começar a organizar o Encontro de Escritores Correntes d’ Escritas para compreender melhor – será? – esta relação Galiza – Portugal – Lusofonia – Brasil.

 

De um lado os galegos em busca de uma identidade que a separe da grande Espanha com a qual sempre se vê confundida até por aqueles que deveriam ser os seus principais aliados, os portugueses. De um lado a Galiza e Portugal para quem a língua é marca identitária. Mesmo que os portugueses não reconheçam no galego a língua que espalharam pelos vários continentes. Mesmo se os galegos consideram que é na matriz da Galiza que os portugueses encontram a sua pátria. Ou, como escreveu Carlos Quiroga, se “quando e como nasceu Portugal” e “quem é hoje” (…) “só a vizinha da mansarda de cima sabe”[2].

 

Do outro lado, o Brasil, no conforto da sua imensidão e consciente (ou talvez nem precise dessa consciência) da sua superioridade numérica e da sua diversidade de linguarejares, distante – talvez menos agora, apesar de tudo – da iniciática Língua Portuguesa falada em Portugal e, mais ainda, – desconhecendo em grande parte, como muitos dos próprios portugueses – da longínqua Língua-mãe, o Galego.

 

Para haver uma aproximação entre a Galiza e o Brasil e os países da dita lusofonia Portugal não terá obrigatoriamente de estar implicado – e não tem estado, de facto, pelo menos ao mesmo nível que a Galiza tem tentado (têm sido bastante mais as iniciativas galegas). Isso é claro e são conhecidos os movimentos de um e outro lado do atlântico, com um Portugal alheado e mais centrado na Europa e na aliança com Espanha.

 

Uma língua comum facilita intercâmbios. E a Portugal, parece-me, caberá assumir um papel determinante nesta ligação. Sobretudo porque o Galego continua à espera de se afirmar como língua única – antes de poder assumir a sua multiplicidade – dentro do seu próprio território.

 

Não cabem no oceano as diferenças das nossas geografias. Mas o que o mar separa a língua une. Cria pontes. Encurta distâncias. A língua e a literatura que usa a língua como ferramenta. A língua, nos seus traços fonéticos mais distintivos, nas suas variantes marcadas por ritmos heterogéneos e idiossincrasias dispersas.

 

A língua, a literatura e consequentemente os festivais literários, porque não?

 

O Correntes d’ Escritas pretende, desde a sua primeira edição, abrir espaço ao diálogo entre as literaturas, a escrita, os autores dos vários países onde se falam as línguas portuguesa e espanhola nas suas diversidades; tornou-se um lugar mítico com uma espécie de língua franca onde cada um pode falar no idioma que sente como seu. Promovemos o Encontro. Aproveitem os seus intervenientes e todos os que pretendam estabelecer contactos. Todos são bem-vindos, têm livre-trânsito para circular e criar as aproximações que entenderem.

 

Quase 600 autoras e autores passaram pela Póvoa de Varzim nos últimos 19 anos. Foram mais de 1200 as intervenções. Do Brasil 42, de Espanha 66, da Galiza 10. De África, no seu conjunto, 54. Muito mais do dobro as intervenções se pensarmos que alguns destes participantes foram repetentes vários anos.

 

Daqui resultaram outros convites, outras relações profissionais.

Só este ano de 2018, 27 % da população portuguesa esteve exposta às informações veiculadas sobre o Encontro. Será tempo de usarmos esta(s) oportunidade(s). E quiçá, galegos, portugueses, brasileiros… olhos postos no futuro da língua que quisermos uma.

Manuela Costa Ribeiro

[1] NEVES, Marco, in http://www.certaspalavras.net/os-brasileiros-os-galegos-e-os-portugueses/

[2] QUIROGA, Carlos, A Imagem de Portugal na Galiza, Através Editora

Manuela Ribeiro – é da Póvoa de Varzim (Portugal), formada em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Uni. do Porto. Trabalhou como jornalista e é funcionária da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. É coorganizadora do encontro literário Correntes d’Escritas-Encontro de Escritores de Expressão Ibérica, que decorre anualmente desde 2000, e coordena a revista Correntes d’Escritas. É autora, também, de livros como O cego de maio, O Catitinha ou Rosa e os feitiços do mar.

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