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Foto de Amanda Moraes 

Uma aproximação com as artes orais dos povos indígenas do Brasil​

​​Sempre me perguntam: como é a música indígena no Brasil? Evito responder de pronto e busco caminhos para explicar que no Brasil existem mais de 250 povos indígenas que falam quase 200 línguas e possuem maneiras muito particulares de expressar suas formas tradicionais de vida. Não é possível colocar no singular tamanha diversidade quando falamos sobre os povos indígenas no Brasil. As culturas são diversas e ilustram diferentes formas de ver o mundo. Nos tempos da colonização, encontram-se relatos dos viajantes e pesquisadores que definem a música indígena como “monótona, estridente, ensurdecedora, desagradável, ruidosa, arrastada e fanhosa”1 . Esses termos revelam estranhamento e aversão e são impressões presentes até hoje, infelizmente.

 

Arte oral

Para se aproximar desse universo sonoro tão múltiplo, torna-se necessário desconstruir não apenas os arraigados preconceitos sobre os povos indígenas, mas também o próprio conceito de música – no sentido ocidental europeu2 – pois esse não se aplica às sociedades indígenas cuja musicalidade opera em diferentes níveis que incluem a fala ritual, a oratória, as preleções xamânicas, instrumentos-espíritos, e tantos outros sons que não cabem nas nossas classificações simplórias. Então, para nos iniciarmos nesse assunto, seria interessante extrapolarmos o conceito de música, e falar sobre a arte oral, conceito mais amplo e complexo, que talvez possa abarcar melhor as diferentes formas de expressão e comunicação dos povos indígenas brasileiros.

 

Muitos saberes indígenas se encontram registrados na memória de pajés, cantores e narradores que recontam os mitos constantemente, em forma de épicos, poesias e canções que se perpetuam por muito tempo. Esses relatos fazem parte do cotidiano e dos rituais das diferentes aldeias no Brasil. Seu valor é inestimável, pois recuperam não apenas parte da história oral brasileira e nos revelam a alma indígena, por muito desprezada pelos colonizadores e desconhecida por muitos de nós.

 

As temáticas dos cantos indígenas

A oralidade indígena, de maneira geral, apresenta diversas temáticas que se relacionam, geralmente, aos elementos da natureza, aos animais que se transformam em gente, que falam, dão conselhos e cantam. Há cantos de cura entoados pelos pajés que se comunicam com espíritos do outro mundo. Nos rituais do cotidiano, há também cantigas de fazer maloca, caçar, colher, fazer chicha, fazer mutirão, pintar o corpo e namorar, sendo que algumas delas fazem parte de rituais complexos que exigem longas sequências sonoras para cada momento da celebração.

De forma didática, podemos ser genéricos, mas é também fundamental entender que cada povo tem sua forma de classificação sobre o fenômeno sonoro, que nem sempre está alijado de outros fazeres como o movimento gestual, os ritos do cotidiano e os grandes rituais. Os fazeres e os saberes, os sons e os movimentos, a fala e o canto estão entrelaçados e são uma coisa só.

 

Arte oral Paiter Surui 3

A arte oral Paiter Suruí, povo de Rondônia com quem me relacionei durante cinco anos, é constituída de narrativas, cantos de pajé, música ritual, cantigas do dia-a-dia e canções de contato que formam um intricado corpo sonoro-antropológico sob a égide de múltiplos tipos de oralidade com diferentes níveis de musicalidade. Os sons contidos no Acervo Arampiã/Paiter Suruí, gravados pela antropóloga Betty Mindlin, são verdadeiros enigmas a desvendar, como pistas para uma compreensão mais ampla do ato de cantar dos Paiter, fenômeno que não poderia ficar restrito à tradução das letras, afinal, a voz Suruí salta aos ouvidos, por suas particularidades expressivas. Na poética Paiter, encontra-se presente uma musicalidade não apenas nas canções, mas também nas narrativas devido à característica tonal da língua do tronco Tupi-Mondé, rica em onomatopeias e ideofones – exclamações com função de verbos que imitam animais da floresta e movimentos dos seres espirituais do outro mundo.

 

Tentativa de classificação

Durante a realização de oficinas4 com os Paiter, como iniciativa de uma das associações desse povo, iniciou-se a escuta do acervo, a transcrição, a tradução e, por fim, a compreensão de um multifacetado panorama com diversas formas de expressão vocal, para o qual, seguindo os conceitos deles próprios, pude chegar à seguinte classificação dividida em quatro categorias:

  1. MITOLÓGICAS SONORAS – função contar histórias, mitos que é dividida em:

  • MATERET’EY PEREWAP’E – cantiga dos antepassados

  • GOXOR EY EWA – cantos tradicionais de outros povos adotados pelos Paiter.

  1. RITOS DO COTIDIANO – cantos de trabalho ligados a rituais de produção que por sua vez, são divididos dessa forma:

  • LAB MAÃ EWA – cantiga de fazer casa, de construir

  • ocas novas

  • MOKÃIKARAREH EWA – cantiga de rachar lenha, parte do Mapimãihme

  • ITXAGAEWA – cantiga de pesca com o recurso do timbó

  • KADEG EY EWA – cantiga de pegar coquinho

  1. CANTOS RITUAIS - festas, rituais e trocas cerimoniais

  • IATIR EWA – cantiga de tomar chicha, bebida fermentada que embriaga o lado do metare, que fica na aldeia (íhiwayey)

  • GAMÃGAREH YELEWA – cantiga de mutirão que precede a festa do Mapimãihme

  • MAPIMÃIHME EWA - cantiga da festa de Mapimãihme, um dos rituais mais importantes dos Paiter, em que se dividem dois grupos: os da aldeia e os da floresta.

  1. CANTOS DE WAWÃEY - cantigas dos espíritos, cantos dos pajés

  • SO EY ATẼHME – é cantado durante o ritual de chegada dos espíritos

  • SO EY PEREIGA – canto dos espíritos para curar

  • PEIXO EY – cantigas do ritual de espantar os espíritos indesejados

  • ASSOBIO – comunicação espiritual, linguagem cifrada realizada entre dois indígenas, usando códigos sonoros ainda não desvendados.

 

Esse breve resumo dos principais gêneros orais se reporta ao passado Paiter, um mundo antigo que poucos jovens conheciam, mas que nos últimos anos passou a ser valorizado com o intuito de fortalecer a cultura desse povo.

1 Esses são alguns termos levantados pela musicóloga Helza Camêu em seu livro Introdução ao estudo da música indígena brasileira (Camêu, 1977).

2 O conceito europeu de música não é, de forma alguma, uma noção compartilhada entre as sociedades de todo o mundo. A separação entre «língua» e «música», que nos parece tão evidente e naturalizada, não é mais que uma construção cultural própria do nosso entorno social, que é mutável e flutuante conforme nos movemos entre épocas e regiões.

3 Aqui encontram-se excertos do texto A Arte oral Paiter Surui publicado no livro “Música tradicional, educación y patrimônio: investigacions etnomusicológicas y educación” de Godoy Tomàs e Joan de la Creu (eds.), Girona: Documenta Universitaria, 2019.

4 Essas oficinas foram organizadas pela Associação Gabgir e foram parte do meu mestrado em Antropologia pela PUC de São Paulo sob orientação da Dra. Carmen Junqueira.

Magda Dourado Pucci é musicista (arranjadora, compositora e intérprete) além de pesquisadora da música de vários povos há mais de 20 anos. Dirige e produz o MAWACA, desde sua formação, grupo que recria músicas de diferentes tradições do mundo tendo já realizado turnês na Espanha, Alemanha, China, Portugal, Bolívia e Grécia e França. Produziu seis CDs e quatro DVDs do Mawaca além de CDs de outros artistas.


É formada em Regência pela ECA-USP. Estudou música popular no Espaço Musical e jazz na Manhattan School of Music em Nova York, além de ter participado de várias oficinas com mestres de diversos lugares do mundo. Durante a turnê do grupo Mawaca à Amazônia, Magda vem realizando intercâmbios com grupos indígenas como Huni-Kuin (AC), Paiter Suruí (RO), Comunidade Bayaroá (AM), Kayapó (PA) e Kaiowa (MS).


Em 2009, conquistou seu mestrado em Antropologia pela PUC-SP tendo apresentado projeto sobre a Arte Oral Paiter Suruí de Rondônia sob orientação das Dras. Carmen Junqueira e Betty Mindlin. É doutora em Artistic Research pela Universidade de Leiden, Holanda.


Magda Pucci publicou diversos livros de educação musical e para crianças tais como: “Outras terras, outros sons”, “De todos os cantos do mundo” e “Contos Musicais” em parceria com Heloisa Prieto; “A Floresta Canta” ; “A Grande Pedra” , “Cantos da Floresta”, em parceria com a educadora musical Berenice de Almeida.


Tem ministrado cursos e oficinas de músicas do mundo e cultura indígena desde 2000, em diversas instituições. É também pesquisadora convidada na Faculdade de Educação da UNICAMP e na pós graduação em Artes no Instituto Singularidades e na Escola de Artes e Música de Curitiba.

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