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"Guardiões das palavras da tribo"

Em novembro de 2018, menos de um mês depois das eleições presidenciais, o escritor Milton Hatoum, a socióloga Angela Alonso e o psicanalista Tales Ab’Sáber se encontraram para um debate no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. O evento marcava os 10 anos da serrote, a revista de ensaios do IMS, que chegava à 30ª edição. Mas a conversa entre os convidados, colaboradores da revista, foi menos festiva do que a ocasião sugeria. O assunto dominante, como não poderia deixar de ser, foi a ascensão da extrema-direita ao poder, três décadas após o fim da ditadura. 

 

Autor de romances fundamentais da literatura brasileira contemporânea, como Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, Hatoum não deixou de notar as relações entre o momento político do país e o tema de seu livro mais recente. Primeira parte de uma trilogia ambientada na ditadura, A noite da espera narra a militância estudantil e o exílio em Paris de um personagem inspirado na juventude do escritor. Enquanto revisitava suas memórias para compor o romance, Hatoum não imaginava ter um dia que lidar de novo com defensores da tortura, do autoritarismo e da censura: “A história às vezes nos trai, somos atropelados pelos acontecimentos”, disse. Mas fez uma ressalva: “Não é preciso se desesperar. O desespero é um erro.” Para Hatoum, o escritor, em tempos sombrios, deve recusar o silêncio e continuar a fazer seu trabalho. “E qual é o trabalho do escritor? Ler, escrever e publicar”, resumiu.


Os conselhos de Hatoum podem ser úteis não apenas a escritores, mas a todos aqueles que se dedicam aos livros e à circulação de ideias no Brasil: de editores, críticos e livreiros a professores, pesquisadores e, claro, leitores. No debate, Hatoum citou Edward Said, de quem traduziu o livro Representações do intelectual, para definir a leitura como “um ato modesto de compreensão da realidade e da História, que amplia os limites da consciência”. E se “ato modesto” revela sua importância no momento em que os ocupantes do poder se dedicam a reescrever a História, exaltando a barbárie da ditadura, e a afrontar a realidade, negando os direitos das minorias, o impacto da desigualdade social, o valor dos serviços públicos, o efeito das mudanças climáticas e tanto mais. 

Em outro ponto sombrio de nosso passado recente, outro escritor cioso de seu papel, Antonio Callado, escreveu que, “nos países incertos de si mesmos, como o Brasil”, o intelectual tem a severa obrigação de ser “o guardião das palavras da tribo”. Não era uma defesa do beletrismo, mas um chamado à consciência de quem trabalha com as palavras e, portanto, tem o dever de zelar para que elas não sejam deturpadas, falsificadas, silenciadas. Na mesma época, Ênio Silveira, editor de Callado e de vários outros autores que entendiam esse compromisso, assinou na sua Revista Civilização Brasileira uma carta aberta ao marechal Castelo Branco, com uma versão mais abusada da tese: “O chamado ‘delito de opinião’, sr. Marechal, é o crime que devemos todos praticar diariamente, sejam quais forem os riscos. Se deixarmos de ser ‘criminosos’, nesse campo, seremos inocentes... e carneiros.”


Os tempos são outros, mas os obstáculos ainda são muitos. A crise das grandes redes de livrarias, das editoras e da imprensa se traduz em piores condições de trabalho e menos espaço para publicar. O debate público é empobrecido pela ação de trolls – alguns automatizados, outros com cargos nos escalões da República – e a brutalidade encontra eco em grande parte da população. Governos hostis, em todas as esferas, desmontam as já precárias estruturas de fomento à leitura, às artes e à pesquisa. Opinião divergente é tratada como ameaça (voltará a ser delito?).


Mesmo diante de tudo isso, como nos lembra Hatoum, o silêncio não é uma opção. “Alguns escritores preferem ficar arredios”, ele observou naquela noite de novembro. “Mas há momentos em que o silêncio é cúmplice do poder, e eu não tenho idade para ficar quieto”, disse. E, como que para chamar à luta os “guardiões das palavras da tribo”, leu um trecho de Guimarães Rosa: “Todo caminho da gente é resvaloso, mas, também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Mire e veja: tenho medo? Não, estou dando batalha.” 

Guilherme Freitas é editor-assistente da revista serrote, publicada pelo Instituto
Moreira Salles, e professor no curso de Jornalismo da ESPM-Rio.

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