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"Sobre como tudo pode mudar de repente"

Desde a expectativa da chegada da Amazon no já longínquo 2012, o mercado editorial brasileiro não gerava tanta notícia. Muito menos tanta notícia ruim.

 

Naquele momento, os grandes players digitais vieram – e sua chegada não significou o fim do livro impresso. E a própria Amazon, ao começar a vender livros físicos no país, acabou por obrigar, de certa forma, o setor a se profissionalizar ainda mais.

A economia estava estável, o dólar seguia valores razoáveis, e as editoras brasileiras ganharam outra imagem na relação com agentes e autores estrangeiros, elevando valores de adiantamentos e de leilões. Festivais literários e prêmios se espalharam pelo país; as bienais conquistavam cada vez mais os jovens leitores.

 

É verdade que o brasileiro, em geral, ainda lia pouco – mas quem lia passou a ler mais, com fenômenos como os dos young adults devoradores de livros. Livrarias se tornaram centros culturais. Livros de colorir fizeram a alegria de muitos editores.

 

Editoras ainda viviam de altos e baixos, consequências da compra sazonal de livros pelo governo para o Programa Nacional de Bibliotecas Escolares, ainda responsável por garantir às casas editoriais anos mais tranquilos.

 

E, então, as coisas começaram a mudar. A economia estagnou, o dólar aumentou. Patrocínios tornaram-se escassos, ameaçando eventos culturais – entre eles, os festivais literários. E o governo parou de comprar livros.

Negócios fechados nas feiras internacionais já não empolgavam, enquanto novos fenômenos editoriais eram aguardados em vão. Editoras abriram selos para publicar uma literatura mais comercial, nem sempre de acordo com seus catálogos. Mas mesmo o respiro oferecido por livros de Youtubers e afins teve fôlego curto.

 

Já seria um cenário delicado, mas então surgiu o maior dos problemas: as livrarias.

Em outubro, após anos investindo em grandes lojas, muitas delas em shopping centers de aluguel caro; de manter abertas unidades deficitárias; e de atrasar o pagamento de seus fornecedores, a Livraria Cultura começou a dar sinais de que os problemas eram ainda mais sérios do que pareciam ser. Fechou as lojas da Fnac, fechou lojas próprias e anunciou um novo foco no e-commerce. E, em seguida, pediu recuperação judicial.

Poucos dias depois, a maior rede de livrarias do país, a Saraiva, fechou vinte de suas cerca de cem livrarias e o fantasma de que neste caso também se recorreria a uma recuperação judicial começou a rondar o mercado. Aliás, após um recente encontro entre o Sindicato Nacional de Editores de Livros e as duas empresas na tentativa de tomar pé da situação e de resolver o abastecimento das lojas para o Natal, os editores disseram que só negociariam com a Saraiva no dia em que ela protocolasse seu pedido de recuperação judicial. Dito e feito. No período de pouco mais de um mês, as duas principais redes de livrarias do Brasil pediram socorro.

 

Como a Cultura e a Saraiva permitiram que a situação chegasse a esse ponto? E o que acontece com as editoras a quem essas redes devem, juntas, R$ 325 milhões? Os valores variam (R$ 700 mil para uma, R$ 4 milhões para outra), mas vivemos o horror: as duas redes respondem por 40% dos faturamentos de grande parte das editoras. A se julgar pelas primeiras informações sobre as negociações entre Cultura e editoras (deságio de 40% e pagamento em até 12 anos sem juros), o futuro parece bastante incerto, ainda mais em um mercado que ainda amarga a falência da rede Laselva. O receio, neste momento, é de que possa haver uma quebradeira para todos os lados – e já há notícias de cortes de funcionários e de redução de lançamentos e tiragens.

 

A crise é séria. Mas pode ser um momento para se repensar o negócio, procurando alternativas e novas formas de continuar produzindo e vendendo livros. 

 

A hiperconcentração nas grandes redes, que nos últimos anos ajudou a escantear as livrarias independentes (nos últimos quatro anos, estima-se que 20% delas fecharam as portas), mostrou-se perversa para todos os envolvidos e talvez possa ser repensada - até mesmo pelas editoras, que por anos alimentaram esse negócio com superdescontos. Vale a pena tentar entender o caso de livrarias que, como a Martins Fontes, com um perfil de gestão menos ambicioso, estão conseguindo passar com um pouco mais de tranquilidade pela crise e até registrar algum crescimento, focando na venda de livros. Ou como a rede Leitura, de Minas Gerais, que chegou a abrir mão de ter um e-commerce, deficitário, para investir em lojas em lugares distantes dos grandes centros e hoje está interessada em comprar algumas dessas livrarias recém-fechadas pela Saraiva.

E vale prestar atenção em editoras que se voltam a algo sempre criticado pelo setor livreiro, a venda direta (em seus sites ou em varejistas online), e aos pequenos livreiros - e esperar que o momento possa dar novo fôlego a esses profissionais, como aconteceu recentemente em outros lugares do mundo, como em Nova York.

Outra questão que talvez possa ganhar um debate mais amplo refere-se à lei do preço fixo, em vigor em alguns países europeus, bandeira antiga da Associação Nacional de Livrarias, que representa justamente os pequenos empresários. E que falou sozinha sobre o assunto até que a crise se instaurou e os editores passarem a perceber a necessidade de uma regulamentação do mercado. O assunto está em Brasília.

 

Os desafios, naturalmente, não são poucos. E vão além do mercado literário em um país dividido como nunca após as últimas eleições presidenciais e cujo novo governo já fala na extinção do Ministério da Cultura e inicia um processo de questionamento a respeito do investimento na área feito pelo Sesc, grande agente cultural brasileiro da atualidade – um cenário que, obviamente, leva a dúvidas sobre em que medida livros literários continuarão na mira do Ministério da Educação que se desenha.

 

Mas, até mesmo por parecer desolador, o cenário não pode ser paralisante. E há, de qualquer forma, notícias auspiciosas. Os números mais recentes da Nielsen mostram um mercado em recuperação desde 2017 (se a conta dos editores não fecha, é porque o dinheiro que entra na livraria não chega até eles). O Prêmio São Paulo de Literatura premiou três mulheres: Ana Paula Maia, Cristina Judar e Aline Bei. O ganhador principal do Prêmio Jabuti é um poeta autopublicado, Mailson Furtado Viana. E acaba de ser criado o Festival Mix Literário, para debater a produção de escritores LGBT.

 

O que esses fatos recentes mostram é que livros seguem a ser vendidos no Brasil. Mas não só. Eles nos falam da capacidade de reinvenção de um mercado, do espírito de luta por novos espaços, da luta por representatividade. São símbolos de que a literatura, mais do que nunca, pode, deve e precisará ser uma forma de resistência.

Maria Fernanda Rodrigues

Maria Fernanda Rodrigues – Jornalista, repórter de Literatura do Caderno 2 do Estadão e colunista da Babel.

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