MILÊNIOS, ÁRVORES, MITOS: ARTE INDÍGENA NA MADEIRA 1
Quem vir as esculturas produzidas pelos artistas indígenas do Acre, ou até mesmo conseguir levar algumas para casa, estará em companhia de deuses e personagens míticos. Divindades antiquíssimas, talvez contemporâneas de figuras bíblicas, ou das poderosas metamorfoses que povoaram o Olimpo grego. É possível que as indígenas hoje representadas em peças de madeira esculpida, de todos conhecidas, tenham ligação e continuidade com que as que eram cultuadas há séculos, quem sabe milênios. As atuais, de alguma forma, serão herdeiras das arcaicas?
Os geoglifos
Os arqueólogos vêm há duas ou mais décadas revolucionando o conhecimento do passado remoto da Amazônia. São capazes de provar que a ocupação humana de vastas regiões da floresta amazônica pode ter se dado há quatorze mil anos em certos casos; não seria loucura dizer que o povoamento seria da época do Gênesis. Arqueólogos afirmam que há florestas amazônicas antrópicas, resultado da ação de pessoas, transformadas por gente, cultivadas, modificadas. No Acre, mais de 400 geoglifos, montículos de terra em estruturas geométricas quadrangulares, circulares, conectadas por estradas, vêm sendo descobertos, em parte em virtude do desmatamento, e puderam ser datados – fala-se de sua construção pela mão humana a partir de 500 AC 2.
Não sabemos quem eram os povos dessa antiguidade remota; no caso dos geoglifos não apareceram vestígios que o demonstrem. Os atuais indígenas do Acre, de 15 povos, de alguma forma, podemos imaginar, terão deles características e traços. Quer sejam os mesmos quer não, estão descobrindo pela arte, nas escolas, nos contatos com os mais velhos, na pesquisa, as raízes prístinas abafadas pelos massacres, invasões, escravidão e doenças que os vitimaram desde a chegada dos europeus e brasileiros tomados pela sanha colonial e agora capitalista de se apossarem de suas terras e recursos.
Os encontros AMAAIC e a evocação das tradições
Imagine-se o encantamento dos encontros e oficinas na floresta organizados pela AMAAIAC. São 146 jovens concentrados em evocar a tradição e o maravilhoso de seus povos. Em paisagem paradisíaca, na selva, longe da agitação urbana, viverão mirações, sonhos, o mergulho em águas profundas até agora escondidas, nas quais irão molhando as ferramentas, transformando a madeira, fazendo brotar um mundo novo – mas velhíssimo, indo de eras longínquas, pairando, possuindo-os como orixás. Será como se tivessem um tempo infinito para que nasçam as seis esculturas que cada um deles está encarregado de fecundar.
A arte sempre esteve presente na defesa dos povos indígenas acreanos. Foi na Comissão Pró-Índio-Acre, fundada em 1979 por corajosos antropólogos, indigenistas e aliados para fortalecer a luta contra os patrões seringalistas, abolir a escravidão indígena e retomar as terras das quais os povos haviam sido expulsos, que começaram em 1983 os cursos de formação de professores indígenas, com o nome inovador de “Uma Experiência de Autoria”. Continuam até hoje, depois de 35 anos, belas publicações de autores e ilustradores indígenas.
É também na CPI/Acre e em estreita colaboração com o projeto educacional que foi criada a formação de agentes agroflorestais (AAFIs), já com 21 anos de existência. Livros, arte, ações, gestão ambiental, história, pesquisa arqueológica compõem uma rara forma política de cidadania e respeito às raízes. Os livros produzidos nos cursos, pela OPIAC -Organização dos Professores Indígenas do Acre, e depois nas atividades dos AAFIs contêm depoimentos pungentes da exploração a que foi submetida a geração anterior à dos artistas atuais.
Feito de heróis
O Acre é um feito de heróis, desde os anos 70 da ditadura, com ações comunitárias, educacionais e ambientais simultâneas. Um modelo para o país todo, ainda mais se pensarmos no que hoje acontece no Brasil, com a escravidão que em tantos lados, mesmo nos grandes centros, não acabou. Observações sumárias que ressaltam a importância da dedicação a criar e lutar pelos bens culturais e ambientais.
1 Com algumas adaptações, este texto é a primeira parte da introdução para o Catálogo de esculturas de Agentes Agroflorestais AAFIS de cinco terras indígenas do Acre. Ver: Mindlin, Betty. Milênios, árvores, mitos: arte indígena na madeira. Em: Agentes Agroflorestais (AAFIS)/AMAAIAC, organização de Renato Gavazzi. Hĩ ea miyushuki, A madeira me contou, Catálogo de esculturas. Rio Branco, Acre: AMAAIAC, 2018, p. 28-43. Enlace para o livro
2 Conferência de Eduardo Neves no evento “25 anos de história indígena no Brasil”, em 11 de dezembro de 2017, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
Betty Mindlin é uma antropóloga e escritora brasileira. São de sua autoria Moqueca de maridos e Tuparis e tarupás. Doutoura em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especializou-se em estudos sobre a cultura indígena, em especial mitos e outras tradições.