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“Canetas pretas que escrevem com as orelhas, com a sola e com os calos que pisam mundos”

Literatura: mina e fogueira. Compreender tranças criativas entre a fala e a leitura, a lábia e a caneta, o papel e a orelha. Desfrutar e refletir sobre brinquedos e revides fundamentados em verbos que aninham ou cortam nas rodas ou nas páginas. Saborear composições, cantos, prosas e dramaturgias. Reconhecer propostas ancestrais e contemporâneas de letras que passam pelas formas da charada, do canto comunitário ecoando refrão e verso, da narrativa enamorada a desenhos na areia, dos contos das diásporas. Trepidar e bailar com personagens que se entranham em nossos labirintos. Ler histórias curtas, pulsando raiva, carinho e surpresas sobre o ser humano. Abrindo frestas pra pensar diáspora negra, chão ladino-amefricano e as tramoias de seus projetos oficiais nacionais, mais os trocos e jeitos de ver das íris pretas, das beiradas.


A força da oralidade vista por quem orquestra de cima
Desde a Angola véia até os becos e escadões da zona sul do século 21 que cultivam livros. Assim também vou só sacando o pessoal abraçar a tocaia que a “nossa cara sempre foi a oralidade” e de tabela chutando pro abismo o que seja livro e leitura. Repetindo exatinho o jogo de Casa Grande (que lê e escreve) e Senzala (que canta, recita, faz performance). Jogo de cerquinha podre. Fuleragem nos livros que chicotearam a gente tem de montão, pela mão grande nos temas e pelas forcas da gramática.Mas papagaiar que a gente se acorrente pela garganta é muita cegueira.


A majestade e soberania de nossas vozes ancestrais não cabem no gibi, nem precisam caber mesmo. Melodias, ritmos, sussurros que trincam muito mais que qualquer berreiro. Fundamentos suados, chorados, brincados. Assim como romances, teorias quentes, versos e prosas fervendo no silêncio da leitura, na viagem com escritos de primaveras passadas que mantém a ideia acesa, podem ser uma bença. Salve a individualidade que se desenvolve mergulhando e dialogando com as páginas. A biblioteca, as vistas e a orelha; a saliva, o teclado e a caneta têm mil namoros e tretas entre si. Som é vibração. Letra é luz, é calor. Uma influencia a outra e até na música que tu aperta o play pra ouvir tem a arquitetura da escrita no equipamento, na minutagem e no jeito de fazer. Isso é papo pra um verão inteiro. Mais fácil levantar bandeira pró-analfabetismo logo então... é a cara na nossa época de muito show e preguiça de ler três parágrafos. Haja ponto de exclamação e gritaria... ou louvação condescendente de quem não larga o osso. Já perceberam que a arte do nosso verbo é sempre destacada pela ‘força da oralidade’ por quem orquestra de cima e não passa disso?
 

Circuito editorial brasileiro é uma delícia. Às vezes, por um pequeno deslize não frisa seu nítido apartheid. É que não há mão preta escrevendo no Brasil, uai... Claro. Estamos tod@s cantando, batucando. Inda bem que há quem nos defenda no plenário, heróis sem capa vermelha. Por isso, nas graúdas, brancos publicam obras chamadas “Contos Negros”, “Histórias de preto”, etc. e seus espelhos não trincam nem lhes escarra no nariz. Lima Barreto até homenageado e tema da feira foi, ano passado. Quantas editoras graúdas do negócio hoje o publicariam, se vivo?


Crítica Literária – por uma crítica maloqueira 

Literatura. Vai ser fera quando vogar uma crítica maloqueira. Que saiba o repique, valha o faro de esquina e tenha o humor doído de um escadão. Que conheça princípios da gambiarra e da encheção de laje. Da cama suada que se move entre goteiras e baldes. Dos mocós na buraqueira do muro. Das panelas tremendo quando passa o trem. Que proponha leitura do texto no espeto, rodado com apetite na brasa, lhe intimando enquanto desfruta seu peso, sua proteína e seu gosto: "- Que personagem é esse, ô maluco?", "- E isso é forma de dizer?", "- Tá compondo pra arranhar ou pro arrebento?", "- Esse final é gato no beiral da noite ou é chiado de feijão às seis?."


Uma crítica que compreenda na unha o gosto de tacar rél, a garapa no mesmo copo, as sacolas na cabeça e o esmalte na banqueta da viela. As tantas funções da bíblia entre o canudo e o cabaré xexelento. O defender no golzinho ainda com o avental cheio de graxa. A angústia gargalhando na correria em turma, pra não perder a última condução do subúrbio. Quando esse nosso time de favelinha orquestrar e esparramar suas leituras, resenhas, aulas... Deslizando com seus calos pela paisagem entre o esgoto e a praia do mel; trançando vários sentidos, teorias ferventes, referências ancestrais e pontes sobre esse corgo das letras; bolando seus cursos pra além da sociologice e do amém, sem carniçar nem idealizar escritor-herói, sem passar pano nem tutelar, aí vamo chapar nesse elo do circuito que ainda falta. Num vejo a hora, trocar várias ideias. E tá chegando que eu sei.
 
Ficção, realidade e a representação
É invenção ou é verdade? Nos perguntam. E o mestre Joel Rufino dos Santos dizia que a ficção, a literatura, talvez fosse tão fértil quanto a História para compreender nossa memória, nossa pisada e nossos horizontes nesse chão 
batizado Brasil, cujo carimbo foi o chicote, a caneta foi e é o porrete e a borracha quer rasgar nossas páginas e nucas. Já Toni Morrison disse mil vezes do romance como a forma mais capaz de expressar a complexidade da história de sua gente negra. Com a arte do verbo ou da cena, com a ficção que nos questiona (não a que pleiteia noite e dia por "representatividade" meramente pra agradar um clube sedento) podemos bailar em quais seriam os medos, sonhos, segredos e repentes de uma pessoa, de uma personagem que traduza nossas madrugadas e nossas esquinas.


Pra além do ibope do momento, ventando bem mais longe e ardendo bem mais dentro do que um turbilhão de opiniões cimentadas, podemos abrir frestas namorando as contradições, as vitórias miúdas, os escorregões e também os desejos acontecidos e talvez não concretizados (mas nem por isso "não realizados", já que guiaram os movimentos de quem semeou sua vontade até na areia). Sim, é nutrição o conhecimento histórico, a sola gasta e a orelha abençoada ou apedrejada nas caminhadas. Aí o ninho pra rédea solta da intuição, da criatividade e da coragem em adentrar nos labirintos das veias da gente. Pra ficção vibrar. E o leitor, o público ou o personagem que passe o seu xeque-mate, divida o lance e o prêmio. Ou engula derrotado (e talvez feliz...) a beirada da mesa. Por isso, porque imaginar é mais que olhar, perguntar se é "verdade" aquele conto, aquela peripécia ou aquela peça não é a razão do corte da nossa faca. Logo nós, que nesse jogo e necessidade escrevemos trocando ideia com quem ainda não chegou e tomando uma com quem já fez sua travessia.


Literaturas negras e periféricas: sapatos nos pés e botinas nos ombros
Escritor@s da banda das literaturas negras e periféricas, nos últimos anos criamos canais com mais e mais gente e ganhamos ao suar fora do frescor do gabinete (onde tão pouco estivemos e talvez nunca desejamos) e criarmos páginas, editoras, cursos, saraus, debates em ladeiras de barro, bibliotecas comunitárias. Mas houve também, em nosso campo, uma eventual e influente perda da profundidade das ideias quando nos emaranhamos em recitais que se quiseram espetaculares, ávidos por aplausos e versando slogans a contemplar a compreensível e importante querença de representatividade positiva de nosso povo? Ou seja, uma poesia ou prosa apenas pra agradar e não também pra cutucar e chamar pro debate? Pra que ficção na favela além da novela e das manchetes mandadas pelos magnatas nos jornais? O quanto se aparenta ao autoritário qualquer movimento, a linguagem, a literatura que se pretende sabidona do que quer seu público (este ente de mil faces e caminhos) ou de quantas asas ele tem pra voar? Esse discurso que questiona ser apagado reflete o quanto de nervo aceso, de labirintos e contradições apequenou diante da amplidão da casa grande?

Há um cotidiano de classe média que predomina nos escritórios e prateleiras. Este cotidiano volta e meia tem sua babá ou garantia de publicação reservada, por herança ou porque até parece ser uma alternativa ao limpinho, com suas calças meticulosamente esfiapadas. E se há outros cotidianos que passam pelos estereótipos destas canetas também, quando tematizados de cima pra baixo e que não escapam tanto às visões hediondas, tutelares ou idealistas, são ainda temas, prismas e linguagens que encontram suas tocaias e memórias, seus ritmos e sanhas, nas canetas pretas que escrevem com as orelhas, com a sola e com os calos que pisam mundos. Na de prosear sobre gestos que pra história oficial.


Há um cotidiano que não é branco e precisa ser apresentado e representado pela linguagem, suado, cheirado e concatenado pelo imaginário, para que alimente a melhor compreensão de nós mesm@s. Por exemplo, o corriqueiro ato de calçar sapatos, pra história preta é carregado de memória de aperto, pela proibição de negros escravizados usarem calçados e então, se alforriados, tantos levarem suas botinas nos ombros pra marcar aquela requenguela mas conquistada ampliação da miúda liberdade. Esta aula os muitos encontros e eventos de literatura nas periferias e margens da cidade, da mídia graúda, da universidade e da oficialidade já dão faz tempo.


Literatura das quebradas: da resistência à conquista de espaços
É de espantar como, à margem de quem se situa como antenada à "literatura contemporânea", a letra preta se enraíza e voa, enche bibliotecas independentes, auditórios, bares, teatros, salinhas e salões, cria movimentos nacionais e mesmo transnacionais com debates e lançamentos, exigindo compreensão das políticas e fundamentos da diáspora africana que transbordam os pactos e miradas meramente nacionais. Nessa teia há harmonia de ideias e, claro, há formas, prismas e concepções bem distintas de poder, tempo, morte e resistência. Mas tem em comum a solene invisibilidade ou estereotipia de quem domina os editoriais hegemônicos.


De resistência, angoleiro aprendi que quem apenas resiste, esquiva e sua só pra não ser golpeado e manter-se de pé, num momento qualquer é pego no meio e derrubado no jogo. Além de resistir, é necessário anunciar, oferecer, criar. E isso, a literatura das quebradas tem de bocado e não precisa nem padrinhagem nem de escarro, apenas de leitura viçosa. Pra se organizar pra lidar com essa sanha que agora arrasta multidões pra discursos rasos ou bombásticos, precisamos cultivar dúvidas. Resistir então pede prumo cotidiano, exige que continuemos junto com nossa multidão, mesmo a que surge mais voraz ou anestesiada, e nela colocar o verbo pra formigar. Ou lagartear.

Allan da Rosa é escritor, angoleiro, historiador, mestre e doutorando na Faculdade de Educação da USP, integra o movimento de Literatura Periférica de SP.

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